Documentos obtidos pela Agência Brasil
confirmam que, ao menos desde 2021, o governo federal sabia que índios
yanomami estavam sofrendo com a falta de alimentos. Mesmo assim, deixou
de atender a pedidos da Defesa Civil de Roraima que, à época, manifestou
a intenção de colaborar na assistência às comunidades da Terra Indígena
Yanomami, que é de responsabilidade federal.
“O governo estadual pediu o apoio federal
para que pudéssemos reforçar a ação humanitária em comunidades indígenas
isoladas pelas chuvas intensas de 2021 e também às da área yanomami”,
contou à reportagem o coordenador da Defesa Civil de Roraima, coronel
Cleudiomar Alves Ferreira, referindo-se ao pedido feito em junho de
2021, por meio de ofícios encaminhados aos extintos ministérios da
Mulher, Família e Direitos Humanos e Desenvolvimento Regional (MDR) que
estavam, à época, sob o comando de Damares Alves e Rogério Marinho.
Nos documentos a que a Agência Brasil
teve acesso, o governo estadual pede ao Poder Executivo federal 8 mil
cestas básicas além das que receberia para distribuir para famílias de
cidades que decretaram situação de emergência devido às consequências
das chuvas “atípicas” que atingiram parte do estado em 2021. Na ocasião,
o governo estadual já tinha reconhecido a
emergência em nove cidades (Bonfim, Cantá, Caracaraí, Caroebe,
Normandia, Rorainópolis, São João da Baliza, São Luiz do Anauá e
Uiramutã).
Veja os ofícios recebidos pelo governo de Roraima:
Ofício de 14 de julho
Ofício de 23 julho
“Com isso, o Ministério do Desenvolvimento
Regional, por intermédio da Secretaria Nacional de Defesa Civil, nos
mandou recursos [financeiros] para adquirirmos cestas básicas e
alugarmos as aeronaves que usamos para levar mantimentos às comunidades
isoladas”, acrescentou Ferreira.
Ainda segundo o coordenador da Defesa Civil
estadual, a intenção era obter 8 mil cestas adicionais e entregá-las às
comunidades indígenas de várias localidades, incluindo as da terra
yanomami onde, estima-se, cerca de 40 mil índios da etnia vivem em área
de difícil acesso. Para atender às comunidades indígenas “atingidas pela
grave situação humanitária”, o governo estadual também pediu o apoio
logístico das Forças Armadas.
“O ministério [da Mulher, Família e dos
Direitos Humanos] respondeu que não tinha como nos ajudar. Informou que
tinha direcionado nossos pedidos ao Ministério da Defesa, à Funai
[Fundação Nacional dos Povos Indígenas, então vinculada ao Ministério da
Justiça e Segurança Pública] e a outros órgãos. Depois, nos disse que a
fundação indígena atenderia aos índios isolados de todo o estado
[incluindo os yanomami], distribuindo cerca de 70 mil cestas de
alimentos a pouco mais de 11,6 mil famílias. Não sei dizer o que
aconteceu depois, mas avalio que se tivéssemos recebido o apoio
solicitado, se a ajuda humanitária tivesse chegado em caráter
emergencial, teríamos conseguido atender também aos yanomami, o que não
conseguimos fazer devido, principalmente, à falta de apoio logístico [de
transporte]”, resumiu o coordenador da Defesa Civil estadual.
Garimpos
Nos ofícios a que a Agência Brasil
teve acesso e que podem ser acessados na íntegra nesta matéria, o
governo de Roraima e o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos
Humanos se referem à “grave situação humanitária” que as comunidades
indígenas em geral enfrentavam e também à “falta de alimentação e
desnutrição infantil vivenciada pelos yanomami” já em 2021. Os
problemas, no entanto, são mencionados como “decorrentes da alta
pluviometria”, ou seja, das fortes chuvas, que atingiram o estado
naquele ano.
Para organizações indígenas e órgãos
públicos, como o Ministério Público Federal (MPF), que há tempos
denunciam a crise humanitária no território yanomami, tanto os efeitos
das chuvas, como os da pandemia da covid-19, foram agravados pelas
consequências nefastas da presença ilegal de cerca de 40 mil garimpeiros
no interior da terra indígena, a maior do país, com quase 9,6 milhões
de hectares. Cada hectare corresponde às medidas aproximadas de um campo
de futebol oficial.
De acordo com a Hutukara Associação Yanomami, a área florestal destruída por garimpeiros
no interior da reserva yanomami vem crescendo exponencialmente, tendo
saltado de 1.236 hectares devastados em 2018, para os 5.053 hectares
desmatados em dezembro de 2022, desestruturando o modo de vida indígena.
Segundo a organização não governamental
(ONG) Instituto Socioambiental (ISA), a crise humanitária que os
yanomami enfrentam, com consequências sanitárias, ambientais,
socioculturais e econômicas, também é reflexo da desestruturação da
assistência à saúde indígena nos últimos cinco anos. Segundo a atual
gestão federal, ao menos 570 crianças yanomami morreram por causas
evitáveis nos últimos quatro anos.
"É inequívoca a associação entre a
devastação que a mineração ilegal provoca e a propagação da malária,
facilitada pela multiplicação de invasores e pelas crateras com água
parada, fruto da atividade e propícias à proliferação de mosquitos
transmissores da enfermidade", destaca o ISA.
Difamação
Consultada pela reportagem, a ex-ministra da
Mulher, Família e dos Direitos Humanos e atual senadora, Damares Alves,
afirmou que a pasta fez exatamente o que lhe cabia fazer: pedir auxílio
às instâncias do governo federal responsáveis por prestar a ajuda
solicitada pelo governo estadual.
“Foram enviados inúmeros ofícios aos demais
ministérios e as respostas recebidas foram positivas quanto ao
atendimento das demandas. Órgãos como Sesai [Secretaria Especial de
Saúde Indígena] e Funai informaram ter distribuído cestas básicas e
realizado ações emergenciais de atendimento aos indígenas”, sustenta a
senadora na nota enviada por sua assessoria.
A reportagem entrou em contato com a Funai
na segunda-feira (30), mas ainda não recebeu informações sobre o que se
passou na gestão anterior.
“Nenhuma campanha difamatória, como a que
tem sido realizada desde o último mês, irá apagar todo o trabalho feito
por toda uma vida pela senadora em favor dos povos indígenas. Damares
Alves é, efetivamente, uma indigenista. E vai continuar trabalhando e
dedicando seu mandato para que todos eles tenham direito a uma vida
digna e plena”, acrescentou a senadora, que já tinha usado as redes
sociais para assegurar que o governo Bolsonaro distribuiu as cestas
básicas necessárias diretamente aos yanomami.
Também em nota, o governo de Roraima
confirma que, após as fortes chuvas de 2021, identificou a necessidade
de apoio federal para socorrer as populações atingidas e atribuiu a
atual situação do povo yanomami à “desassistência por parte do governo
federal”.
“Sempre estive muito atento aos problemas do
estado e sei da fragilidade que temos por ser uma unidade federativa
pequena e ainda muito dependente dos recursos vindos do governo federal.
Por esse motivo, é regra em nosso governo a atenção a tudo, o pedido de
auxílio quando necessário, o atendimento de todos os pedidos dentro das
nossas possibilidades e a coerência com as nossas ações”, afirmou o
governador Antonio Denarium em resposta enviada pela Secretaria Estadual
de Comunicação na qual detalha uma série de ações desenvolvidas nos
últimos anos
Leia aqui a nota na íntegra
“No caso específico dos povos indígenas, o
governo estadual sempre buscou atuar com alternativas de inclusão nas
etnias onde essa inclusão era permitida, mas dentro dos limites,
respeito a cultura e aos hábitos de cada povo”, acrescenta o governo
roraimense, destacando que no caso da saúde, o atendimento inicial é de
responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai),
subordinada ao Ministério da Saúde, e, mesmo assim, em quatro anos,
27.650 indígenas foram atendidos em um dos cinco hospitais públicos da
capital, Boa Vista.
Denarium também comentou as críticas que
recebeu em função de recentes afirmações. Segundo o jornal Folha de S.
Paulo, o governador negou, em entrevista, a gravidade da crise sanitária
exposta com a divulgação de imagens de adultos e crianças visivelmente
subnutridos, muitos com as barrigas inchadas, em um claro sinal de
verminoses, e com as unidades de saúde de Boa Vista lotadas de yanomamis
transferidos às pressas para receber suporte médico devido à malária,
infecção respiratória aguda e outras doenças para as quais não há
remédios nos polos base. Além de mobilizar a opinião pública, o impacto
das imagens motivou o governo federal a declarar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional para combater a crise sanitária e humanitária.
“Com relação às críticas feitas em veículos
nacionais, o governador se diz tranquilo, pois acredita que muita coisa
foi tirada de contexto. Esquecem que essa desassistência por parte do
governo federal é que causou essa situação dos povos yanomami”, aponta
Denarium na nota enviada à Agência Brasil. “Reafirmo
ser contrário ao garimpo em área indígena e que não quero ver indígenas
ou não [indígenas] vivendo e passando por privações. Principalmente, não
quero soluções paliativas como as feitas até hoje. Precisamos, juntos,
unidos, governo do estado e governo federal, dar soluções definitivas
para todo e qualquer problema que aflige a nossa gente, sejam eles
indígenas ou não”.